Por Jildonei Lazzaretti
Ao longo dos tempos, os acontecimentos relacionados aos seres humanos vão sempre passando por transformações e recebendo novos significados. Isso às vezes torna-se um risco para a identidade constitutiva destes acontecimentos. Entre estes acontecimentos podemos citar a páscoa, que cada vez mais é desconsiderada no seu âmbito religioso original, e tida como um fato lendário relembrado apenas para justificar a movimentação econômica. Assim, este artigo, que está baseado na obra “El Misterio Pascual” do Frei Raniero Cantalamessa, pretende recordar o significado da páscoa cristã, suas origens e implicações.
A palavra Páscoa deriva possivelmente da expressão hebraica pesach, que significa “passagem”. Passagem esta que foi abordada de formas diversas conforme a tradição na qual era transmitida. Por isso é importante a distinção entre a atual páscoa cristã da páscoa judaica.
A páscoa judaica foi interpretada sob duas perspectivas. Primeiramente, conforme o Êxodo cap. 12, a páscoa (pesach) é a passagem de Deus entre seu povo. Isto é, aqui se está no contexto em que Deus lançou a última das pragas sobre o Faraó, a saber, o extermínio dos primogênitos do Egito, filhos de homens ou de animais. Porém, para poupar o seu povo que ainda permanecia como escravo no Egito, Deus pede a Moisés que cada família tome um cordeiro e observando um ritual (Cf. Êx 12, 1-14) alimente-se dele e sobre a porta das casas faça a aspersão do sangue deste cordeiro. E este sangue identificará aqueles que serão poupados por Deus: “O sangue será para vós um sinal; nas casas em que estiverdes: quando eu vir o sangue passarei adiante e não haverá entre vós o flagelo destruidor, quando eu ferir a terra do Egito” (Êx 12,13). Deste modo, a primeira interpretação da páscoa judaica refere-se à passagem de Deus que passa exterminando os primogênitos do Egito e que poupa aqueles que são seus (e estão identificados com o sangue do cordeiro).
Sob outro aspecto, a partir de Deuteronômio 16 e dos capítulos 13 ao 15 do Êxodo, a páscoa judaica designa a passagem do povo de Deus pelo Mar Vermelho (Mar dos Juncos), ou seja, a saída do Egito que indica a passagem da escravidão para a liberdade. O povo torna-se livre para servir a Deus, conforme o próprio Moisés tantas vezes pedia em nome de Deus ao Faraó: “Deixa ir livre o meu povo para que me sirva” (Êx 4,23; 5,1).
Assim sendo, a páscoa judaica refere-se à passagem de Deus, que passa salvando o seu povo; e à passagem do homem (do povo) que passa pelo Mar para ser salvo. Num primeiro momento, Deus é o protagonista (Ele é quem passa e salva) e posteriormente, o protagonista é o homem (ele é quem passa e se deixa salvar). Na primeira concepção, o instrumento de mediação entre Deus e os homens é o Cordeiro e seu sangue; e na segunda é Moisés e sua liderança sobre o povo.
É preciso analisar agora a Páscoa cristã, enquanto complemento e plenificação da páscoa judaica; uma vez que a imolação de Cristo é vista como a realização de todas as esperanças contidas na antiga páscoa judaica.
Pode-se dizer que na páscoa cristã ocorre a síntese das duas interpretações que se tinha da páscoa judaica. Agora, o protagonista não é mais o homem ou o Deus de Israel, mas Jesus Cristo, que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Em Cristo, os dois protagonistas da páscoa deixam de ser alternativos ou justapostos e tornam-se um só. Na pessoa de Cristo estão unidas divindade e humanidade, graça e liberdade, autor e destinatário da Salvação. Por isso que em Cristo se realiza a “Nova e Eterna Aliança”. É uma aliança diferente de todas as outras, e que é eterna porque agora ninguém poderá separar aqueles que contraem a aliança (Deus e o homem); o que propõe a Aliança e o que adere a ela são uma só pessoa em Cristo.
A Páscoa ou “passagem” de Jesus Cristo é a “passagem deste mundo para o Pai” (Cf. Jo 13,1). A passagem deste mundo para o Pai remete a uma estreita relação entre paixão e ressurreição: pois foi através da paixão que Jesus chegou à glória da ressurreição, enquanto passagem da morte para a vida. A paixão de Cristo remete ao Cordeiro imolado, e a sua ressurreição indica a passagem da morte para a vida (da escravidão para a liberdade); portanto, o sacrifício do Cordeiro e a saída do povo do Egito estão unidos em Cristo na sua paixão e ressurreição.
Cristo é, ao mesmo tempo, o Cordeiro por cujo sangue se identifica os que fazem parte do povo de Deus e o Novo Moisés que conduz os homens a passarem da morte para a vida. Pelo sangue de Cristo, Deus concede a Salvação aos homens; mas cabe aos homens, em sua liberdade, aderirem a esta salvação por meio do seguimento a Cristo.
Deste modo, o estudo acerca da páscoa, de sua origem e de seu verdadeiro significado é uma forma eficaz de combater com veemência a mentalidade da sociedade atual segundo a qual a páscoa é mais um acontecimento lendário evocado unicamente como uma data que justifica o calendário consumista. Tal estudo manifesta que a páscoa é um acontecimento histórico que ocorreu no passado, se atualiza no presente e prefigura o que está por vir nutrindo as esperanças cristãs; mas mesmo perpassando a história, o mistério pascal está para além dela, é um dado transcendente. Ou seja, Deus se revela ao longo da História da Salvação “passando” por meio da vida humana e permitindo que o homem realize a “passagem” salvífica da morte para a vida. E esta revelação de Deus atinge sua plenitude em Jesus Cristo, que passa pela história permanecendo na história através do derramamento de seu sangue e conduzindo para além da história, através da ressurreição, aqueles que o seguem.
Nosso agradecimento ao autor pelo envio do artigo.
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